23.2.11

De manhã as horas não passam

De manhã as horas não passam
Versão do viciado, filho da dona simone

Acordou encostado no muro, o cachimbo estava apagado, e talvez sua vida estivesse lá dentro do caximbo, em cinzas. A noite passada estava tudo bem, tudo corria tão bem, tinha esticado três carreiras, estava bem, as coisas iam bem. Naturalmente que sua mãe estaria ocupada em suas preocupações mesquinhas, distante da família e pensando em lucros, interesses próprios, status, e pensando um jeito em alegrar mais sua vida vazia.
Ele não, ele estava sendo feliz, ele era feliz. Sua mãe era infeliz, seu pai era infeliz, sua irmã era infeliz, ele não. Agora sua vida estava completa, só faltava ele pra preencher sua vida, e ele chegou malandramente, ele chegou sem fazer barulho. Ele e sua cápsula de farinha namoravam aconchegados naquela viela suja, e repleta de pessoas alegres e felizes. Um mundo sem distinção de raça, classe social e nem de crença. Todos apegados aquilo que lhes tinha restado, e usavam cada vez mais, pra esquecer a vida lá de fora, ou talvez para se lembrar dela, sei lá? cada um com sua viagem.
Quando seu amigo chegou, alguns se levantaram, outros gritaram, outros saíram em disparada, tinham que ter ele também. Alguns, mas só os bobos, covardes, saíram do local, todos medrosos, medo de alguém tão legal.
Observou bem, suas púpilas estaladas não deixavam ele enchergar muito além do jardim das rosas em que ele se encontrava, mas os maltrapilhos já começavam a usar seu amigo, era simples, muito fácil, pra que o medo?
Um isqueiro, um cachimbo, uma nota de dez.
Três coisas que ele não tinha, mas com a nota de cinquenta que tinha no bolso, não seria muito díficil conseguir o que queria. Ali o dinheiro era o que menos tinha, e o que mais se perdia, portanto quem tinha dinheiro, era o rei daquele mundo. E o dia que não tivesse conheceria o outro lado.
Encostado naquele muro, pensava como foi bom ter usado e abusado dele, agora só precisava de dinheiro, sua mãe, ela daria o dinheiro, seu pai daria, sua irmã não daria, mas isso não importava.
Se eles não dessem? Ele os roubaria. Isso, ele tinha direito a viver no paraíso, se eles queriam viver no inferno, problema deles. Bom, o dinheiro não poderia faltar de maneira nenhuma, sabe como é né, o cara era legal, mas cobrava pro seu uso, normal. Tudo muito natural, por quê não seria. Ouviu dizer que já mataram até a própria mãe, pra ter " o amigo", pra usar. Se ele mataria sua mãe, achava que não, não chegaria a tanto, mas sua irmã, não, não tinha tanta certeza, não tinha amor nenhum por ela, pra usar seu "amigo" faria quase tudo, ou tudo, já não sabia mais o que faria. Pensou em sua mãe descobrindo tão fato, virou pro lado e deu um sorriso, ela lhe daria um sorriso, e falaria: Meu filho apresenta seu amigo pra mim, talvez assim eu também seja feliz, seremos uma família muito feliz. Pensou em seu pai, mas que se foda o que seu pai pensaria ou falaria, ele nunca ligou pra família mesmo, ou melhor, a última vez que teve afeto de seu pai, foi aos oito anos naquele aniversário, em que toda a família estava reunida. Deixou a família de lado e começou a contemplar o jardim de rosas em que estava, as flores eram grandes, belas e perfumadas. As árvores davam frutos, folhas verdes e lindas, e flores lindas, como são lindas. Um cheiro de terra que subia a suas narinas, aquele sabor de interior, aquela paz que só o jardim das rosas podia lhe proporcionar. Olhou pro lado, viu uma mulher grávida chorar, por quê será? se ali todos estava felizes. Será?
Começou a caminhar entre os felizes, alguns estavam tristes, não tinham dinheiro pra ter o que mais queriam, talvez hoje não seriam felizes, mas amanhã, ou mais tarde roubando alguém ou vendendo o próprio corpo, teriam a felicidade. Em meio ao jardim de rosas, alguém gritou: Olha a loira!!!! Tá vindo junto com a Morena!!!!!
A correria debandou, o que se via era uma correria generalizada, um dia antes na televisão o jornalista sensacionalista cobrou das autoridades uma atitude.
- Isso é uma pouca vergonha, onde já se viu, em pleno centro de São Paulo, um verdadeiro depósito de humanos destruídos pelas drogas!!!!!!!!!!!
- Essa cracolândia é uma pouca vergonha, onde estão as autoridades, cadê a polícia que não faz nada pra evitar isso, cadê o governador, cadê as clínicas de recuperação.
Os homens de farda cinza, com cacetetes na mão, expulsava-os do jardim florido em que estavam, as flores na verdade, já estavam murchas faz tempo, eles é que não enchergavam, as arvóres não tinha mais flores, folhas ou frutos, o chão estava seco e cheio de erosões, o vento que soprava era poluído e sem brisa, e a chuva era ácida como o coração dos homens que os expulsava dali, e o sol virou puro fogo ardendo na pele. As chamas do inferno já eram visíveis. Era engano, caraí que porra, o diabo pintou o inferno de paraíso, e só agora ele tinha percebido. O único que não botava a cara na situação era o diabo, ele estava encastelado em algum palácio ou escondido em alguma mansão, sei lá algum lugar, mas no inferno não, não estava lá, não ainda. Mas pra não falar que não estava presente, mandou sua corporação completa pro lugar. A corporação do diabo.
Ele corria, pra não ser pego, se sua mãe descobrisse que ele estava frequentando a cracôlandia, com certeza a bronca seria grande, e poderia ser até mandado pra uma clínica de recuperação, seria o fim. Sua família tinha condições de recuperá-lô, mas ele não queria, queria morrer nas mãos do seu amigo, seu único amigo e herói no mundo inteiro:
o Crack.
Um amor que começara tão recentemente não poderia acabar daquela maneira, por isso ele corria, as pessoas olhavam pra ele assustadas, algumas seguravam as bolsas, carteiras e celulares com medo de serem roubadas, outras olhavam apreensivos, torcendo pelos viciados, pra que não apanhassem outra vez dos homens da corporação do diabo, de farda cinza e de farda azul, que corriam em direção dos viciados, doidos pra saciarem suas vontades malígnas de vingança e seus espirítos de carrascos desde a época dos escravos. Algumas pessoas, evangélicos protestantes, oravam e levantavam a bíblia gritando palavras do livro de Mateus.
Quando olhou pra trás, viu que os malígnos ficaram pra trás, suspirou aliviado, e seguiu em direção a uma estação de metrô, tinha que ir pra casa. O que o crentes não explicavam era que existia várias filiais do inferno no mundo, e uma delas era sua própria casa. Sua casa, não, não ficaria muito tempo lá, mas precisava tomar um banho, estava maltrapilho, e cheirando a merda. Fome e sono não tinha, talvez era seu amigo que lhe tinha ajudado, lhe tirou a fome e o sono, grande amizade, um novo amigo era tudo que ele queria. Entrou no metrô e pensou consigo mesmo, mais tarde iria novamente pro centro da cidade, visitar seu amigo: O crack.

Renato Vital escritor e Corinthiano as vezes sem noção.

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